ele nunca parou direito pra ver o céu, ele não liga pra essas coisas, quem tem tempo pra isso, na verdade, ele acha
essas coisas meio de boiola, mas agora ele pode ver o céu, mas não é que ele quer ver o céu, ele tá sendo obrigado a
ver o céu, porque agora ele tá no chão, de costas pro chão, e o céu tá bem lá em cima, como sempre esteve, o céu
sobre nossas cabeças, só que parece maior, um grande cobertor azul, azulzão, ou um saco de lixo azul, melhor, um
grande saco de lixo azul aberto ao meio, com os vincos laterais rasgados pra ele ficar esticadão, e as nuvens olham
pra ele, bem lá de cima, pra sua cara ensanguentada, na verdade, não toda a cara, não vamo exagerar, só o nariz,
depois do soco que fez ele cair no chão, tropeçou nos calcanhares e paf, bunda no piso quebrado, invadido pela erva
daninha e mato mijado de cachorro, a palma da mão ralada, e o sangue do nariz escorre no lábio superior e ele sente
um gosto de cadeado na boca, e solta um ganido que Eles não escutam, um som que combina bem com o seu rosto
horrorizado, horrorizado pela primeira vez, um ganido de choque, em nada parecido com o grunhido do gato antes de
morrer, o grunhido do gato perseguiu ele, aquele grunhido antes do último suspiro, sabe, aquele som rasgado que o
gato solta no ataque, só que agora mais curto, bem curto, um corte de navalha e pronto, sem vida dentro da sacola,
naquela sacola do Baratão, não um saco lixo, muito menos azul como o céu, uma sacola de mercado, mesmo, com a
alça esticando pra arrebentar com o peso do gato morto, já era o gato do ******, como Eles podiam ter feito aquilo, é,
não adiantou correr pro outro cômodo da casa, se é que pode chamar de casa, esse esqueleto chamuscado, devorada
pelas chamas de um ferro de passar esquecido sobre a cama, lembra, a rua derretendo, o fogo lambendo o céu preto
da madrugada, os bombeiros acordando todo mundo, e hoje aí abandonada no fim da rua, fedendo a mijo, o point de
puta, mendigo e crackeiro, sua Mãe que disse, mal sabe ela, Eles preferem assim, quem desconfiaria, ele olha pra Eles
sem acreditar, Eles foram os responsáveis pelo soco e por ele tá no chão agora encarando as nuvens, nesse piso
quebrado, mancha de fogo nas paredes, com mato invadindo, forçado a olhar pro céu e eles vão aparecendo, um por
um, num plano contra-plongée, sabe, tipo filme de gângster, quando os caras abrem o porta-malas e a gente vê eles lá
de dentro, e agora eles aparecem bem assim, como se fossem gângsters, mas não são gângsters, ou são, ele não
sabe, um por um, contra a luz, apenas suas silhuetas escuras, primeiro o Frutinha do lado esquerdo, depois a Quatro-
Olhos atrás do ombro dele, a handycam na mão ainda, aí o Freio-de-Burro na direita, e, por fim, ocupando o centro do
semi-círculo, o chefão, quem diria, quem diria não, é óbvio que ele estaria no centro, mas quem diria que seria ele, o
Rolha-de-Poço, o próprio rolha-de-poço, agora um santinho-do-pau-oco, todo respingado de sangue de gato, o líder
da gangue mais improvável da rua, improvável porque ninguém conhece, ninguém sabe que são uma gangue, parecia
um bando de otário junto, agora tão mais pra seita, isso sim, uma seita, com ritual de iniciação, que não foi bem a
morte do gato, não não, ele tem certeza, aquilo foi mais pra mostrar do que Eles são capazes, vai chorar agora Di-
Caprio, essa carinha bonitinha chora de medo também, não aguentou aquela ceninha né, outra cena de filme, tudo
devagar, o tempo esticado quase arrebentando, o Rolha-de-Poço sorrindo, e tudo tava devagar, que nem slow motion,
slow motion e a trilha podia ser um death metal escandinavo, e o movimento circular da sacola do Baratão naquele
banheirinho sem teto, tudo registrado na handycam da Quatro-Olhos, sempre de olho na telinha projetável, o melhor
ângulo, a mão direita tremendo de êxtase, a esquerda tapando os olhos do Frutinha, fraquinho das emoções, mas
espiando entre os dedos da coleguinha, e o Freio-de-Burro olha de um lado pro outro, a cabeça vai da cena brutal aos
seus olhos arregalados, a sua cara de horror, e volta pro golpe final do Rolha-de-Poço, o golpe da sacola na louça
quebrada, na borda do vaso, o grunhido rascante do gato e o som gutural da trilha, os olhinhos do Freio-de-Burro
brilham como brackets, pega ele, não adianta fugir, você tá sendo muito mal-criado, Di-Caprio, cadê aquela macheza
toda, e a cara do Rolha-de-Poço sai das trevas da contraluz e para na frente da sua cara agora, olho no olho, e ele
pega a sua mão direita e segura o seu dedo indicador entre os dentes, como uma guilhotina, seu dedo indicador da
unha defeituosa, do tiro de chumbinho, a ponta do dedo da unha defeituosa toca a língua virgem do Rolha-de-Poço, e
de novo o tempo se alarga, e o Freio-de-Burro e a Quatro-Olhos e o Frutinha respiram pesado ali atrás dos ombros
largos do Rolha-de-Poço, e o seu sangue do nariz já secou, mas o suor escorre pras têmporas, e o Rolha-de-Poço
finalmente afrouxa os dentes e solta o seu dedo defeituoso, seu único defeitinho, Di-Caprio, que viagem, mano, puta
que pariu, que viagem, você não consegue mais controlar sua voz esganiçada de choro, as risadinhas, e aí, ou vai ou
racha, e você só sacode a cabeça pra cima e pra baixo de olhos fechados, e os três saem das sombras e se agacham
ao lado das suas pernas, com destreza cirúrgica levantam a bainha do seu jeans até a canela e abaixam sua meia,
dessa vez sem dedo cortado, sem sangue com sangue, só a lambida gosmenta no tornozelo, o tribal de chiclete, o
cuspe no papel, a esfregada demorada, e a palma da mão pressionando, e a sua bochecha sente o frio do piso
quebrado, um redemoinho, uma vertigem, um mal-estar, uma lisergia-brutal, e de repente tá tudo pronto, Fura-Bolo,
sim, Fu-ra-Bo-lo, e os pézinhos ali tudo em volta, calças arregaçadas, tatuagem igual pra todo mundo, o tribal da
irmandade, ali, querendo sair pela meia de otário, agora fique de pé, Fura-Bolo, e bem-vindo ao clube, companheiro,
bem-vindo ao clube